Não é sempre que temos a chance de entrevistar, ou até mesmo conhecer, alguma figura que nos inspira. Como jornalista de MMA já tive a sorte de entrevistar campeões e perdedores, treinadores e mestres, atletas amadores e profissionais. Não nego o frio na barriga cada vez que ficava frente a frente com uma estrela da luta, ou até pela internet a ansiedade ainda me ataca ao apertar o send. Mas lhes digo, nem os dois metros do gigante Jon Jones me intimidaram tanto como estar na presença de um Gracie, um Mestre Gracie. Sim Jones é mais famoso, mais difícil de entrevistar, mas ele tem 23 anos e é relativamente novo no esporte, se considerarmos que Mestre Rolker Gracie tem 45 anos de tatame, não leu errado amigo, tudo isso de tatame, não de idade!
Rolker Gracie e atraso não combinam
Era uma noite agradável de sexta, raridade no frio outono curitibano. Lá estava eu à espera de meu ex-professor de Jiu Jitsu, que estava organizando o seminário do Mestre Rolker Gracie. Cheguei ao ponto de encontro, mal esperei 5 minutos e lá estava meu amigo, um tanto estabanado por estar atrasado. Entrei no carro e lhe mostrei as perguntas que havia preparado, ele não prestou atenção, pois seus olhos tinha apenas um dono: o relógio. Ele me falava aflito como o Mestre era pontual, deveríamos estar no hotel uma hora antes do seminário.
Meus anos de tatame, não muitos nem poucos, não me preparam para este momento. Ao descer do carro, não sabia como me postar diante de uma lenda, afinal era o filho do grande Mestre Hélio Gracie que estava ali presente. Deveria me curvar ou apenas apertar a mão? Chamar de mestre ou de senhor, quiçá um desrespeitoso você?
O encontro foi suave e meu professor estava certo, o Mestre não estava contente pelo atraso. Ele já foi avisando que as coisas não são feitas deste jeito, e que dá próxima vez tudo teria que ser diferente. Falou do desrespeito aos alunos presentes e que se fosse seu irmão Royler, não voltaria mais. O professor, um tanto cabisbaixo, tentou contornar a situação: Mas você é a estrela da noite Mestre. Resposta errada! Não se enganem, este cara é uma das figuras mais condecoradas e queridas da arte suave curitibana, faixa preta de verdade com uma quantidade de troféus e medalhas que dão inveja a qualquer atleta de ponta. Mas ali estava ele, acuado por ter falado besteira. “Por isso mesmo devo chegar antes e cedo”, retrucou o mestre. “Se eu não der o exemplo quem irá” completou Rolker Gracie.
Neste ambiente que eu deveria fazer a reportagem, sim no carro, pois não tínhamos mais tempo para nada. O carro não tinha ar condicionado, então era difícil fechar a janela para evitar o ruído. O mestre conseguiu quebrar o gelo falando dos carros velhos que ele tinha na juventude, deixando assim o clima mais ameno e mais propício para o meu trabalho.
Entrevistando a Lenda
Na primeira pergunta já desafinei. As horas que gastei debruçado sobre artigos na internet, e as releituras do livro de Carlos Gracie (tio do entrevistado), não me salvaram do acabrunhamento. Antes da minha pergunta, afirmei que Rolker era o filho que mais tempo passou com Mestre Hélio, puro engano. Recebi uma sequência de nãos, rígidos, mas educados. O Mestre me educou que ele era o filho que mais ficou com Hélio no final da sua vida, NO FINAL, ele deixou bem claro. Essa afirmação era apenas um gancho para eu perguntar qual a maior lição que Hélio deixou ao mundo. Após reformular minha pergunta, foi isso que Rolker Gracie respondeu:
“Meu pai, além de ter deixado essa mensagem do Jiu Jitsu, tudo que o Jiu Jitsu representa como figura humana era um grande professor, era uma pessoa que ensinava coisas boas, ensinava o Life style, estilo de vida saudável, isso dai é uma grande coisa! Fora a dieta Gracie e o esporte em si, o principal é o estilo de vida, o estilo de vida Gracie.”
O algoz da família Gracie
O Mestre foi muito educado e atencioso ao responder minha primeira pergunta; o que me deixou 0,5% menos ansioso. A segunda pergunta era sobre o algoz de seu irmão, Eddie Bravo. O americano criou um novo sistema de Jiu Jitsu, e ficou famoso após bater Royler no ADCC muitos anos atrás. O mestre foi bem enfático ao comentar novas formas, posições e sistemas da arte suave:
“Não, não, isso que o Eddie Bravo está falando é besteira, No Jiu Jitsu nada se inventa, às vezes é a mesma posição, ela para de ser treinada vinte, trinta anos depois ela volta. Nada se cria, mas tudo se melhora! E esses sistemas de novas faixas, se ele quiser fazer pode fazer na academia dele, cada um faz na sua academia. Eu acredito que o mestre Hélio, o método que meu pai ensinou é o melhor. Minha família de 1925 até 1950 testou o Jiu Jitsu, todos os dias chamavam o pessoal do porto do Rio, os estivadores, para testar os golpes, para sair na porrada, para ver se funcionava ou não funcionava. A cara agora pega tudo explicadinho e fala que o sistema dele é melhor que o nosso? Não! Manda-o ralar primeiro, tirar a prova, é isso.”
Kron, o herdeiro do legado
Mestre Rolker, mesmo nas declarações mais passionais, tinha a serenidade de um samurai. Falava tudo com muita calma, parece que já tinha respondido essas perguntas inúmeras vezes, que mesmo na agonia do atraso, as respondia com maestria.
Para piorar, meu professor fazia as piores escolhas de ruas possíveis, passou na rua dos bares em plena sexta-feira, e o caminho de oito quilômetros parecia infinito. Ao ser indagado sobre o quem é melhor atleta atualmente na família, o mestre sequer titubeou ao citar seu sobrinho.
“Da atualidade é o Kron, ate pouco tempo atrás era o Roger, mas ele deu uma parada, e o maior de todos os tempos no Jiu Jitsu é meu irmão Rickson, e no Vale Tudo, pelo que ele fez no UFC é o Royce disparado.”
Mestre Rolker se enche de orgulho quando fala de sua família: peito estufado, semblante sorridente e brilho no olhar. Soberba? Não, porque faço o mesmo quando minha mãe faz um pudim de leite, imagine se ela tivesse inventado o Jiu Jitsu! Sobre o futuro da sua família, ele foi representativo mais uma vez.
“A gente tem que viver o presente, e juntar o passado também, não podemos esquecer do Mestre Hélio Gracie, do Jiu Jitsu, do meu tio Carlos também, eles foram os pioneiros do Jiu Jitsu. O legado que nos deixaram, ainda seguimos estritamente. O futuro, o passado e o presente se unem. A figura máxima não é o Rickson, não é o Royler, não é o Royce, não é o Rolker: é o grande Mestre Hélio Gracie, ele é o cara, os filhos são excepcionais, mas ele é o grande mentor de tudo.”
Chegando à academia, mesmo com atraso, o clima já era de alegria. O Mestre me convidou a participar do seminário, fiquei hesitante por estar muito tempo parado, mas pensei que nunca mais poderia ter essa graça de treinar com um membro da família real do Jiu Jitsu. Logo fui procurando um Kimono no carro, e acabei desafinando novamente ao escolher o Kimono azul. O Mestre foi direto: “Pega o branco! Se não vai ficar longe de mim na foto.”.
O seminário em si foi interessante, Mestre Rolker Gracie se mostrou atencioso e paciente com todos os presentes. Desde o faixa branca até o faixa preta, que vinham das mais diversas academias da cidade, rivais ou não.
Num dado momento do seminário ele chega bem perto de mim e me chama pelo nome: “Fabiano”? Eu já vestido com roupas de guerra, estava dificultando atarefa de distinguir o repórter do aluno.
Respondi: Sim, Mestre!
Ele olha bem pra mim e fala com sotaque carioca carregado: “Caracas, tu é muito feio. Tira o boné mais não”.
Ser Mestre é isso, fazer a pessoa acreditar até no que discorda. Não respondi que era realmente feio, afinal já escutei muito isso dos meus colegas, apenas ri juntamente com os outros atletas ao meu lado. Na verdade, me senti honrado de ter sido zuado por tal lenda, acho que até minha mãe se estivesse presente ia considerar direita a afirmação de Mestre Rolker sobre a aparência do seu único filho.
Hora de dizer adeus
O seminário acabou, meu professor ganhou um grau na sua faixa preta, o que foi um tanto emocionante para todos os presentes, e fui para casa quieto e pensativo. O que é uma raridade, pois falo pelos cotovelos. Pensei no Jiu Jitsu que tinha largado ha algum tempo, e como eu era um homem melhor quando treinava. Pensei no jornalismo em geral, como passar informação me deixa feliz. Mas o que realmente me intrigou foi a serenidade do Mestre Rolker Gracie, sempre no controle dos golpes, conselhos e lições. Sempre falando que aprende todos os dias com os alunos, mesmo possuindo uma enciclopédia da arte suave na sua memória. Uma lenda viva que nos faz lembrar os que vieram antes que nós: seja no esporte ou em casa. Essa sim foi a maior lição: “Não se esquecer do passado, trabalhar duro no presente para ter sucesso no futuro”.
Fontes de imagens: Roler Gracie.com, Jungle Combat Blogspot, Academiagracie.com.br, Aprenda Jiu Jitsu, ESPN, Gracie Columbia